Chuva

Momento de viagem, literalmente sob chuva ou sob sol

Pra quem é de São Paulo, uma canção sobre chuva cairia muito bem pra celebrar esse fim de semana. Essa cidade é conhecida como "Terra da Garoa", embora podem passar meses inteiros sem um pingo de chuva. Aqui, garoa é coisa rara. Quando a água cai é pra valer. Alaga, cria trânsito, destrói casas. Quando Deus pediu pra Noé construir uma arca, é de se considerar que Noé estava em São Paulo. Entretanto, esse fim de semana fez jus ao apelido da cidade. Sábado recebemos uma chuva tranquila que durou o dia inteiro. Domingo, as gotas caíram mais suavemente e mais espaçadas. E foi essa última que eu recebi integralmente na cabeça, enquanto andava de bicicleta. Me peguei rindo da própria sorte e percebendo o quão raro é tomar uma chuva daquelas que te lava por completo. Devíamos praticar mais disso. A situação cômica casou com a intenção, existente há algum tempo já, de falar sobre Rain, dos meus queridos Beatles. A canção foi lado B de um single lançado em 1966, mas lançada em álbum em 1988 na compilação "Past Masters - Volume 2". Segue a letra:




Rain
(Lennon/McCartney)

If the rain comes they run and hide their heads.
They might as well be dead,
If the rain comes, if the rain comes.

When the sun shines they slip into the shade,
And sip their lemonade,
When the sun shines, when the sun shines.

Rain, rain, rain
I don't mind,
Shine, the weather's fine.

I can show you that when it starts to rain,
Everything's the same,
I can show you, I can show you.

Rain, rain, rain
I don't mind,
Shine, the weather's fine.

Can you hear me that when it rains and shines,
It's just a state of mind,
Can you hear me, can you hear me?

Vamos à andança...

Quando comecei a adentrar no mundo do Rock and Roll, eu ainda não conseguia distinguir a identidade das bandas nem suas influências. Até por isso, não entendia por quê, por exemplo, diziam que Oasis era uma cópia dos Beatles. Pra mim as duas bandas eram - e ainda são, em boa medida - completamente diferentes. Mas quando ouvi Rain, entendi. Se Oasis chupou alguma coisa dos Beatles, foi essa canção. O timbre da guitarra usado por George Harrison, estridente, elétrico e envolvente é uma das fortes características de Noel Gallagher, guitarrista do Oasis. Mas enquanto o Oasis focou sua identidade nesse tipo de som, nos Beatles isso, como quase tudo, foi momentâneo. É o toque de midas da canção. Cada obra dos Beatles é única por algum motivo, seja na letra reflexiva de In My Life, no piano monstruoso de Hey Bulldog, no heavy metal de Helter Skelter. Aqui a guitarra ondulante é que dá a liga pra viagem. Naquela época, os Beatles já adentravam um lado mais espiritual em suas canções, influência da visita à India e das dogras mais psicodélicas. John Lennon deixa claro essa linha de composição numa reflexão sobre um fenômeno natural tão comum quanto o pôr do sol, porém nem sempre bem vindo: a chuva. Ele diz, acompanhado do riff excelente e da bateria altamente marcante de Ringo Starr: "Quando a chuva chega, eles correm e escondem suas cabeças. Eles poderiam muito bem estar mortos, quando a chuva chega". Essa última frase da estrofe é sempre repetida, e acompanhada pelos backings maravilhosos de Harrison e Pual McCartney. Lennon prossegue: "Quando o sol brilha, eles correm pra baixo de uma sombra. Lá eles preparam suas limonadas, quando o sol aparece". Após os novos backings, uma virada leva a música pro refrão - nada mais que duas frases emblemáticas: "Chuva, chuva, chuva, eu não me importo. Brilho, brilho, a temperatura está boa". Apesar de duas frases curtas, esse trecho é o ponto máximo da peça, com uma vocalização ótima quando John diz rasgado "Raaaaaaaain" ou "Shiiiiiiine", acompanhado dos backings e de um sino. Esse sino eleva o refrão à uma quarta potência, nos remetendo à um cenário daqueles que merecem uma foto: um campo verde com sol ao fundo, entrecortando a torre de uma igreja com seu sino e sendo banhado por uma chuva fina de verão. Se você conseguiu visualizar essa cena, talvez tenha tido vontade de tomar um banho nessa chuva, tão revigorante. Entretanto, como Lennon afirma na canção, quando a chuva aparece todos fogem como se estivesse caindo agulhas afiadas do céu. Ironicamente, se a chuva cessa e o sol brilha forte, todos correm do mesmo jeito. É uma característica humana não estar satisfeito nunca. Mas é humano também sobrepôr qualquer limitação, seja física ou espiritual. É por isso que Lennon, um dos Mestres que o mundo conheceu diz na sequência: "Eu posso te mostrar que quando a chuva cai, tudo continua igual". Na última e mais enigmática estrofe ele conclui: "Você pode me ouvir quando digo que se a chuva cai ou o sol brilha é apenas um estado de sua mente?" Ele repete, como sempre a última frase ("Can you hear me?"). O efeito distante na voz de Lennon só transporta a banda ainda mais pra outra dimensão - uma dimensão de mestres, onde não há dúvidas, nem certezas absolutas. Lá, tudo faz sentido, ainda que não haja sentido nenhum no universo. Sol ou chuva, a natureza segue seu ciclo perfeito e infinito. Nós, ao invés de seguirmos o exemplo, apenas reclamamos, ou tentamos nos adaptar ao que não gostamos. Talvez a lição de John Lennon sirva para despertar nosso lado mais puro e sábio ao reconhecer a beleza tanto no sol como na chuva; tanto no frio quanto no calor; tanto no simples como no absurdo. É e por esse misto de complexidade e simplicidade, que Beatles nos faz viajar mesmo na chuva ;)

PS: Uma curiosidade beatlemaníaca. Rain e Paperback Writer (lado A do mesmo single) foram os primeiros clipes da história da música. É por isso que o vídeo começa com George Harrison dizendo: "De certa maneira, nós inventamos a MTV"

Nunca ouviu?

Comentários